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Eu não a via há anos. Minha
lembrança era de seu sorriso agradável, dos cabelos grisalhos sempre bem cuidados
e de sua cadeira de balanço, como toda velhinha gosta. Ah, e do carinho que sempre
me demonstrou. Hoje, sem causa aparente, fui visitá-la. Sentei no sofá e
enquanto apreciava um café ela adentrou a sala.
Ou melhor, adentraram a sala por
ela. Numa cadeira de rodas, a conduziam. A presença daquele corpo, confesso, me
incomodou. Afinal, quem sabe lidar soberanamente com o tempo que passa,
inexorável? Que não se abate, por pouco que seja, com a presença da morte quando
ela se aproxima, inexorável? Ou com as marcas implacáveis e inflexíveis do
correr dos anos em nós?
Daquele corpo forte de outrora,
restou um serzinho frágil que precisa, tal um bebê, ser carregado para sobre
uma poltrona. Daqueles braços lépidos em me abraçar em minha chegada, sobraram
fracos ossos cobertos por pouca carne e uma fina pele, sensível ao mínimo toque
mais descuidado. E quase incapaz de levantarem para um simples aceno. Daqueles
olhos que pareciam sorrir ao receber uma visita, ficou um olhar perdido, para o
teto, para o nada ou para o tudo, para onde posicionassem sua cadeira. Da memória
sempre viva a perguntar como estavam eu, meus estudos, meus pais... restou o
Alzheimer.
Atônito e vítima desta minha imaturidade
- afinal, ali não havia nada demais ou de menos do que o cumprimento do ciclo
da vida - me aproximei sem esperança. Sem esperança de que ela me reconhecesse.
Coloquei-me bem diante dela, meio
que roubando seu campo de visão. Ao pé de seu ouvido, falaram alto o meu nome.
Segundos de silêncio. E ela finalmente me mirou. E sorriu. Disseram todos
alegres na sala: “Ela reconheceu você. Ela ri quando reconhece alguém”. Tentou
balbuciar alguma sílaba.
Me senti agraciado. Sorri por dentro, comovido, sem
imaginar que logo em seguida ela levantaria sua mão trêmula e tentaria acariciar
meu rosto, sem sucesso. A pouca força e coordenação não permitiam. Tentei
ajudar, até que a palma de sua mão estivesse toda em minha face.
Puxei um assento para perto e me
demorei por longos dez minutos a acariciar seus cabelos. Para lá e para cá.
Eles não tinham o brilho e o volume da senhora vaidosa de anos atrás. Mas os
fios de sua cabeça ainda serviam para receber seu carinho favorito: um ingênuo cafuné.
Enquanto a mimava, me perguntei sobre quantos momentos tão
preciosos quanto um cafuné podem ser apreciados por quem já não tem mais
autonomia de corpo e de mente.
É verdade. Mas havia algo dela
cuja autonomia restava plenamente preservada: seu espírito. Dentro de mim, algo
me inquietou: “por que não?”. O papo na sala de estar já ia longe, para os
outros. Foi quando me acheguei um pouco mais e disse clara e pausadamente: “Deus
ama a senhora”. Esperei um pouco mais tentando calcular o tempo de a informação
ser interpretada pelo cérebro fatigado.
Repeti ainda mais calmamente: “Deus
ama a senhora”. Embora sua feição me dera a certeza de que ela havia entendido,
perguntei: “A senhora entendeu?” Sua boca mexeu e compreendi que aquilo era um
milagre e que eu deveria prosseguir. “Deus está com a senhora. Aqui. Jesus ama
a senhora. Ele está aqui. É ele quem preserva a sua vida”. Meu coração ardia
por falar que Cristo a amava muito. Foi isso o que mais disse.
Articulei
brevemente sobre Jesus, confiando no muito que ela certamente já ouvira sobre a
Paixão e Obra do Senhor em quase cem anos de vida e ainda temendo que ela se
cansasse com tantas palavras.
Sim, ela certamente já tivera
ouvido muito, mas talvez ainda não a pergunta que se seguiria em meu sermão
íntimo: “Jesus quer morar em seu coração. Quer ser seu Senhor e Salvador. A
senhora quer?”. Eu a ouvi dizer: “quero”.
Repeti tudo de novo, enquanto seu rosto franzia, seus olhos fechavam de vez em
quando e abriam, emocionados.
Sua respiração acelerou ao ponto de me fazer
medo. Fui em frente a aproveitei para deitar a mão em seu peito e acalmá-la
dizendo que Jesus já estava morando ali. Orei para que ela escutasse,
entregando a vida daquela mulher quase centenária Àquele que é eterno.
Seguidor de Jesus ainda preso a
tantas amarras invisíveis da religião, pedi que ela repetisse algumas palavras,
e, este Cristo, que não tem amarras e é tão misericordioso, me fez ouvi-la
novamente balbuciar: “Senhor Jesus, eu te recebo como Senhor e Salvador da
minha vida. Vem morar em meu coração. Amém“.
Não sei explicar como me sinto
agora. Mas sei que o Reino de Deus chegou àquele coração.
No cafuné despretensioso
e na boa-nova de que Jesus de verdade ama. Não porque foi minha a mão estendida
(eu pecador a necessitar de misericórdia que sou) ou porque palavras minhas
encontraram aquela mulher. Mas porque havia uma mão qualquer de alguém qualquer
em inteireza de ser fazendo cafuné em alguém doente e cansado e porque palavras
de vida eterna retiniram, num eco que ressoou desde a cruz do calvário até encontrar
os ouvidos quase moucos daquela mulher.
Jesus quis dizer o tempo todo,
basta vê-lo, ouvi-lo e segui-lo, que o seu Reino era o reino dos fracos. Dos
cansados, doentes, crianças, pobres, viúvas e desesperados. Por isso, tenho
certeza de que Deus não demorou estender sua morada àquele coraçãozinho senil,
depois daquele “quero”. Deus e seu Reino não foram vistos, mas estavam ali. É que
o Reino de Deus não está na classe dos palcos, números e estardalhaços, mas
estava na fraqueza daquela mulher.
Foi uma das tardes mais
singulares de minha vida. E já está decidido: voltarei àquela casa mais algumas
vezes para novos momentos de cafuné e oração.
Meu Deus, que privilégio!
"...
Senhor, quando te vimos com fome ou com sede ou estrangeiro ou necessitado de
roupas ou enfermo ou preso, e não te ajudamos? "Ele responderá: ‘Digo-lhes
a verdade: o que vocês deixaram de fazer a alguns destes mais pequeninos, também
a mim deixaram de fazê-lo”. Mateus 25:44-45